ANDRÉ
COMTE-SPONVILLE – GRATIDÃO-
A gratidão
é a mais agradável das virtudes; não é, no entanto, a mais fácil. Por que
seria? Há prazeres difíceis ou raros, que nem por isso são menos agradáveis.
Talvez sejam até mais. No caso da gratidão, todavia, a satisfação surpreende
menos que a dificuldade. Quem não prefere receber um presente que um tapa?
Agradecer à perdoar? A gratidão é um segundo prazer, que prolonga um primeiro,
como um eco de alegria à alegria sentida, como uma felicidade a mais para um
mais de felicidade. O que há de mais simples? Prazer de receber, alegria de ser
alegre: gratidão. O fato de ela ser uma virtude, porém, basta para mostrar que
ela não é óbvia, que podemos carecer de gratidão e que, por conseguinte, há
mérito - apesar do prazer ou, talvez, por causa dele - em senti-la. Mas por
quê? A gratidão é um mistério, não pelo prazer que temos com ela, mas pelo
obstáculo que com ela vencemos. É a mais agradável das virtudes, e o mais
virtuoso dos prazeres.
..A gratidão se regozija com o que aconteceu, ou com o que é; ela é, portanto,
o inverso do arrependimento ou da nostalgia (que sofrem com um passado que se
foi, ou que não é mais), como também da esperança e da angústia, que desejam ou
temem (desejam e temem) um futuro que ainda não é, que talvez nunca seja, mas
que as tortura com sua ausência... Gratidão ou inquietude. A alegria do que é
ou foi, contra a angustia do que poderia vir a ser. “A vida do insensato”,
dizia Epicuro, “é ingrata e inquieta: ela se volta toda para o futuro” Por isso
eles vivem em vão, incapazes de se saciarem, de se satisfazerem, de serem
felizes: eles não vivem, dispõem-se a viver, como dizia Sêneca, esperam viver,
como dizia Pascal, depois lamentam o que viveram ou, mais freqüentemente, o que
não viveram... O passado como o futuro, lhes falta. Já o sábio regozija-se com
viver, claro, mas também com ter vivido. A gratidão (charis) é essa
alegria da memória, esse amor do passado - não o sofrimento do que não é mais,
nem o pesar pelo que não foi, mas a lembrança alegre do que foi. É o tempo
reencontrado, se quisermos (“A gratidão do que foi”, diz Epicuro).
Compreendemos que esse tempo torna a idéia da morte indiferente, como dirá
Proust, pois aquilo que vivemos, a própria morte, que nos levará, não poderá
tomar de nós os bens imortais, diz Epicuro, não porque não morremos, mas porque
a morte não poderia anular o que vivemos, o que fugidia e definitivamente
vivemos. A morte só nos privará do futuro, que não é. A gratidão liberta-nos
dele, pelo saber alegre do que foi. O reconhecimento é um conhecimento ( ao
passo que a esperança nada mais é do que imaginação); é por aí que ela alcança
a verdade, que é eterna, e a habita. Gratidão: desfrutar eternidade.
Isso não nos restituirá o passado, objetar-se-á a Epicuro, nem o que
perdemos...Sem dúvida, mas quem pode fazê-lo? A gratidão não anula o luto,
consuma-o:”É necessário curar os infortúnios com a lembrança reconhecida do que
perdemos, e pelo saber de que não foi possível tornar não-consumado o que
aconteceu. Pode haver formulação mais bela do trabalho de luto? Trata-se de
aceitar o que é, também o que não é mais, e de amá-lo como tal, em sua verdade,
em sua eternidade: Trata-se de passar da dor atroz da perda à doçura da
lembrança, do luto a consumar ao luto consumado (“a lembrança reconhecida do
que perdemos”), da amputação à aceitação, do sofrimento à alegria, do amor
dilacerado ao amor apaziguado,. “Doce é a lembrança do amigo desaparecido”
dizia Epicuro - a gratidão é essa própria doçura, quando se torna alegre. No
entanto, o sofrimento é mais forte primeiro: “Que terrível ele ter morrido!”
Como poderíamos aceitar? Por isso o luto é necessário, por isso o luto é
difícil,, por isso é doloroso. Mas a alegria retorna, apesar dos pesares. “Que
bom ele ter vivido!” Trabalho de luto: trabalho de gratidão.
...A gratidão é alegria, repitamos, a gratidão é amor...Alegria somada a
alegria: amor somado a amor. A gratidão é nisso o segredo da amizade, não pelo
sentimento de uma dívida, pois nada se deve aos amigos, mas por superabundância
de alegria comum, de alegria recíproca, de alegria partilhada. “ A amizade
conduz sua dança ao redor do mundo”, dizia Epicuro, “convidando todos nós a
despertar para dar graças”. Obrigado por existir, dizem um ao outro, e
ao mundo e ao universo. Essa gratidão é de fato uma virtude, pois é a
felicidade de amar e é a única.
Fragmentos do texto “A GRATIDÃO”. André Comte-Sponville - Pequeno Tratado
das Grandes Virtudes - Martins Fontes. São Paulo. 1996.