terça-feira, 31 de janeiro de 2012

SONHOS E PALAVRAS



O LIMPA PALAVRAS
Álvaro Magalhães


Limpo palavras.
Recolho-as à noite, por todo o lado:
A palavra bosque, a palavra casa, a palavra flor.
Trato delas durante o dia
Enquanto sonho acordado.
A palavra solidão faz-me companhia.

Quase todas as palavras
Precisam de ser limpas e acariciadas:
A palavra céu, a palavra nuvem, a palavra mar.
Algumas têm mesmo de ser lavadas,
é Preciso raspar-lhes a sujidade dos dias
E do mau uso.
Muitas chegam doentes,
Outras simplesmente gastas, estafadas,
Dobradas pelo peso das coisas
Que trazem às costas.

A palavra pedra pesa como uma pedra.
A palavra rosa espalha o perfume no ar.
A palavra árvore tem folhas, ramos altos.
Podes descansar à sombra dela.
A palavra gato espeta as unhas no tapete.
A palavra pássaro abre as asas para voar.
A palavra coração não pára de bater.
Ouve-se a palavra canção.
A palavra vento levanta os papéis no ar
E é preciso fechá-la na arrecadação.

No fim de tudo voltam os olhos para a luz
E vão para longe, leves palavras voadoras
Sem nada que as prenda à terra,
Outra vez nascidas pela minha mão:
A palavra estrela, a palavra ilha, a palavra pão.

A palavra obrigado agradece-me.
As outras, não.
A palavra adeus despede-se.
As outras já lá vão, belas palavras lisas
E lavadas como seixos do rio:
A palavra ciúme, a palavra raiva, a palavra frio.
Vão à procura de quem as queira dizer,
De mais palavras e de novos sentidos.
Basta estenderes um braço para apanhares
A palavra barco ou a palavra amor.

Limpo palavras.
A palavra búzio, a palavra lua, a palavra palavra.
Recolho-as à noite, trato delas durante o dia.
A palavra fogão cozinha o meu jantar.
A palavra brisa refresca-me.
A palavra solidão faz-me companhia.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

SONHAR E BRINCAR



VEJAM QUE PRECIOSIDADE,DE UM ESCRITOR PORTUGUÊS CONTEMPORÂNEO.

O BRINCADOR
Álvaro Magalhães


Quando for grande, não quero ser médico,
engenheiro ou professor.

Não quero trabalhar de manhã à noite,
seja no que for.
Quero brincar de manhã à noite,
seja com o que for.
Quando for grande, quero ser um brincador.
Ficam, portanto, a saber:
não vou para a escola aprender a ser um médico,
um engenheiro ou um professor.
Tenho mais em que pensar
e muito mais que fazer.
Tenho tanto que brincar,
como brinca um brincador,

muito mais o que sonhar,
como sonha um sonhador,

e também que imaginar,
como imagina um imaginador...
A mãe diz que não pode ser,
que não é profissão de gente crescida.
E depois acrescenta, a suspirar:
"é assim a vida".

Custa tanto a acreditar.
Pessoas que são capazes,
que um dia também foram raparigas e rapazes,
mas já não podem brincar.

A vida é assim? Não para mim.

Quando for grande, quero ser brincador.

Brincar e crescer, crescer e brincar,
até a morte vir bater à minha porta.
Depois também, sardanisca verde
que continua a rabiar mesmo depois de morta.

Na minha sepultura, vão escrever:
"Aqui jaz um brincador.
Era um homem simples e dedicado, muito dado,
que se levantava cedo todas as manhãs para ir brincar com… as palavras.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

PANTA REI=TUDO FLUI


TURNER- INGLES- IMPRESSIONISTA-

DO LIVRO DE MARIO SÉRGIO CORTELA:
"NÃO ESPERE PELO EPITÁFIO"...


HERÁCLITO:
"NÃO SE PODE ENTRAR DUAS VEZES NO MESMO RIO.
DISPERSA-SE E REUNE-SE; AVANÇA E SE RETIRA".
ESTA IDÉIA É SINTETIZADA PELA EXPRESSÃO
GREGA"PANTA REI" (TUDO FLUI).

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

LUA E SONHO



CONTO
Bartolomeu Campos Queirós


Há muitos e muitos anos, não muito longe daqui, vivia uma menina que sonhava em ter a Lua. E, por mais que a mãe lhe dissesse que a Lua ficava longe e era fria, mais a menina chorava e pedia.
Para distrair a filha, a mãe tecia e bordava seus vestidos com luares de prata, pacientemente. O pai enfiava em fios de seda pérolas brancas e lisas, cultivadas em conchas, para o colar da menina. Mas nada trazia a felicidade para a filha, que sonhava, dia e noite, noite e dia, em ter a Lua, mesmo sendo longe e fria.
Muitas vezes, buscando consolar a menina, a mãe dizia: "Filha minha, o caminho da Lua é muito dentro da noite. Em seu escuro, além de estrelas e constelações, grandes dragões cortam as estradas com raios, trovões e labaredas. Nas nuvens da noite dormem morcegos com asas longas, capazes de esconder outros vampiros e demônios." Mas nada desviava o desejo da menina de morar na Lua, mesmo sendo longe e fria.
Uma tarde o pai não voltou do trabalho. Perdeu-se nas sombras da floresta colhendo os frutos mais saborosos, fabricados pela ternura das estações, para presentear à filha. A noite já andava alta, e a mãe, debruçada na janela, com os olhos fixos no caminho que traria o esposo, caiu em um sono grande e mais profundo que o firmamento. E a menina, sonhando com a Lua, aproveitou o descuido dos pais e tomou o caminho de São Tiago, buscando a Lua, longe e fria. A estrada era feita de neblina e poeira de estrela, brilhante como o vidro. Mas entre uma estrela e outra havia o nada. E o nada era imenso e vazio.
Ela assentou-se na primeira estrela, debruçada sobre a noite. Muito triste, começou a chorar. E seu intenso pranto choveu por sobre a Terra. E eram tantas as lágrimas que um oceano, salgado e misterioso, se formou.
A mãe da menina, com medo de se afogar, pediu ajuda aos céus e transformou-se em espírito das águas. O pai, sem a esposa e a filha, cheio de amor, salvou-se em um pequeno barco e passa as noites e noites navegando nos mares, procurando a mulher e a menina querida.
Naquela noite, os soluços da menina chamaram a atenção de um cavaleiro que galopava pelas estradas de São Tiago. Escutando o pranto, cheio de pena, aproximou-se da menina. Adivinhando o seu desejo de ter a Lua, mesmo sendo longe e fria, oferece-lhe ajuda. A menina montou na garupa do cavalo branco. E, como o cavaleiro era São Jorge, não foi difícil chegar à Lua.
E até hoje, se a noite é clara, a menina desce com a Lua para o fundo dos mares, rios e oceanos, visita o espírito das águas e ilumina o caminho para o pescador de estrelas.

domingo, 15 de janeiro de 2012

PARTIR OU NÃO?



Álvaro de Campos

Na Véspera


Na véspera de não partir nunca
Ao menos não há que arrumar malas
Nem que fazer planos em papel,
Com acompanhamento involuntário de esquecimentos,
Para o partir ainda livre do dia seguinte.
Não há que fazer nada
Na véspera de não partir nunca.
Grande sossego de já não haver sequer de que ter sossego!
Grande tranqüilidade a que nem sabe encolher ombros
Por isto tudo, ter pensado o tudo
É o ter chegado deliberadamente a nada.
Grande alegria de não ter precisão de ser alegre,
Como uma oportunidade virada do avesso.
Há quantas vezes vivo
A vida vegetativa do pensamento!
Todos os dias sine linea
Sossego, sim, sossego...
Grande tranqüilidade...
Que repouso, depois de tantas viagens, físicas e psíquicas!
Que prazer olhar para as malas fítando como para nada!
Dormita, alma, dormita!
Aproveita, dormita!
Dormita!
É pouco o tempo que tens! Dormita!
É a véspera de não partir nunca!

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

CANSAÇO E POESIA


ESTHER RESTING- CANSAÇO-

O que há em mim é sobretudo cansaço
Álvaro de Campos(Fernando Pessoa)


O que há em mim é sobretudo cansaço
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.
A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto alguém.
Essas coisas todas -
Essas e o que faz falta nelas eternamente ;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.
Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada -
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser…
E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto…
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço.
Íssimo, íssimo. íssimo,
Cansaço…

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

SILÊNCIO DAS ESTRELAS


VAN GOGH-NOITE ESTRELADA-

(NÃO ME CANSO DESTA OBRA, ASSIM COMO DE TODA A OBRA
DE VAN GOGH.)

INFINITO SILÊNCIO
Ferreira Gullar


houve
(há)
um enorme silêncio
anterior ao nascimento das estrelas

antes da luz

a matéria da matéria

de onde tudo vem incessante e onde
tudo se apaga
eternamente

esse silêncio
grita sob nossa vida
e de ponta a ponta
a atravessa
estridente

in Muitas Vozes

domingo, 8 de janeiro de 2012

QUANDO CRESCER???



VERBO SER
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE


Que vai ser quando crescer?
Vivem perguntando em redor. Que é ser?
É ter um corpo, um jeito, um nome?
Tenho os três. E sou?
Tenho de mudar quando crescer? Usar outro nome, corpo e jeito?
Ou a gente só principia a ser quando cresce?
É terrível, ser? Dói? É bom? É triste?
Ser; pronunciado tão depressa, e cabe tantas coisas?
Repito: Ser, Ser, Ser. Er. R.
Que vou ser quando crescer?
Sou obrigado a? Posso escolher?
Não dá para entender. Não vou ser.
Vou crescer assim mesmo.
Sem ser Esquecer.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

TOQUE SUTIL



MAPA
ROSEANA MURRAY


me toque assim
em voo rasante
como a chuva
que se aproxima
o vento entre
as dobras da chuva
abrindo as janelas
do sótão

me toque assim
a ponta dos dedos
tirando a poeira
de tantos séculos
de luz mortiça

me toque assim
como o último pássaro
do mundo
engole o sol
e adormece no mar

me toque debaixo da pele
ali onde dormem
gerânios esquecidos
onde o sangue é mais
leve
e as lembranças
fazem cem vezes
o mesmo caminho.

in Poesia Essencial, ed. Manati

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

POESIA E UTOPIA



O DIREITO AO DELÍRIO – EDUARDO GALEANO

No próximo milênio o ar estará limpo de todo veneno que não venha dos medos humanos e das humanas paixões. Nas ruas, os automóveis serão esmagados pelos cães. As pessoas não serão programadas por computador, nem compradas no supermercado, nem espiadas por televisor. O televisor deixará de ser o membro mais importante da família e será tratado como o ferro de engomar ou a máquina de lavar a roupa. As pessoas trabalharão para viver, em vez de viverem para trabalhar. Será incorporado nos códigos penais o delito de estupidez, que cometem todos aqueles que vivem para ter ou para ganhar, em vez de viverem apenas para viver, como canta o pássaro sem saber que canta e como brinca a criança sem saber que brinca. Em nenhum país serão presos os jovens que se recusem a cumprir o serviço militar. Os economistas não chamarão nível de vida ao nível de consumo, nem chamarão qualidade de vida à quantidade de coisas. Os cozinheiros deixarão de considerar que as lagostas gostam de ser cosidas vivas. Os historiadores deixarão de crer que existiram países que gostaram de ser invadidos. Os políticos não acreditarão mais que os pobres adoram comer promessas. A solenidade deixará de se julgar uma virtude e ninguém tomará a sério nada que não seja capaz de assumir. A morte e o dinheiro perderão os seus poderes mágicos, e nem por disfunção ou por acaso será possível transformar o canalha em cavalheiro virtuoso. Ninguém será considerado herói ou louco só porque faz aquilo que acredita ser justo, em vez de fazer aquilo que mais lhe convém. O mundo já não se encontrará em guerra contra os pobres, mas sim contra a pobreza, e a indústria militar não terá outro caminho senão declarar a falência. A comida não será uma mercadoria, nem a comunicação um negócio, porque a comida e a comunicação são direitos humanos. Ninguém morrerá de fome porque ninguém morrerá de indigestão. As crianças de rua não serão tratadas como se fossem lixo, porque não haverá crianças de rua. Os meninos ricos não serão tratadas como se fossem dinheiro porque não existirão meninos ricos. A educação não será um privilégio apenas de quem possa pagá-la. A polícia não será a maldição daqueles que não podem comprá-la. A justiça e a liberdade, irmãs siamesas condenadas a viverem separadas, voltarão a juntar-se, bem unidas ombro com ombro. Uma mulher, negra, será presidente do Brasil e outra mulher, negra também, será presidente dos Estados Unidos da América; uma mulher índia governará a Guatemala, e outra o Peru. Na Argentina, as loucas da Praça de Maio serão um exemplo de saúde mental, porque se negaram a esquecer em tempos de amnésia obrigatória. A Santa Madre Igreja corrigirá os erros das tábuas de Moisés, e o sexto mandamento mandará festejar o corpo. A Igreja ditará também outro mandamento que havia sido esquecido: "Amarás a natureza, da qual fazes parte". E serão reflorestados os desertos do mundo e os desertos da alma.

Os desesperados serão esperados e os perdidos serão encontrados, porque eles são aqueles que desesperaram de tanto esperar e os que se perderam de tanto procurar. Seremos compatriotas e contemporâneos de todos os que tenham desejo de justiça e desejo de beleza, tenham nascido onde tenham nascido e tenham vivido quando tenham vivido, sem que importem as fronteiras do mapa e do tempo. A perfeição continuará a ser o aborrecido privilégio dos deuses, mas, neste mundo imperfeito e exaltante, cada noite será vivida como se fosse a última e cada dia como se fosse o primeiro.